03 fevereiro, 2014

Quando cozinhar é mais que um sonho

Encontrei no blog do restaurante brasileiro Maní Manioca um fabuloso texto de Fernanda Valdívia que não pude deixar de partilhar...


"Tem alguma coisa subjetiva sim, que brota num instante incontrolável, de forma menos racional ainda, se desenrola por meios instáveis e consegue chegar vitorioso do outro lado. O momento em que um cozinheiro se depara pela primeira vez com uma ideia, e dias depois, o momento em que o cliente se depara com essa mesma ideia em um prato, são cúmplices de sentimento. Estava lá um cozinheiro sentado ao pé da janela, dia frio, dia de folga, pernas doloridas descansando sob uma xícara de chá entre as mãos. Cozinhar é encontrar-se com si próprio, em silêncio. “É preciso estar presente naquilo que faz, sabe? Na cozinha, a presença é a diferença. Se você está, sai um prato, se não está, sai completamente outra coisa, do mesmo prato” Helena.
Havia um sabor destacado no serviço da noite anterior, guardado na memória para ser explorado no dia seguinte, um sabor danado que coçava a língua logo cedo ao despertar. Havia uma manhã inteira estendendo um tapete felpudo de reflexão onde se rolar com esse sabor. “Com abóbora? Não sei se tão doce assim, talvez mandioquinha. Coentro cairia bem. Chega de reduções, chega de manuseio. Um frescor, um pouco de brasa e limão.” A inquietação, o vulto do destino na ebulição do pensamento e o prazer do caminho, disfarçado na angústia de descobri-lo. É um segredo que o cozinheiro leva com ele por dias, e se diverte tentando reconhece-lo em pedaços da rotina, marcha um prato que leva tapioca, experimenta uma colherada do que sobrou na panela, associa ao seu segredo e reformula o caminho. Até que finalmente o bicho vai ganhando forma, começa a aparecer em testes, vai devolvendo o resultado da explosão entre ideia e matéria de forma ainda mais inédita. E a execução, levada à exaustão, se consolida. Entra para o cardápio, é desmembrada e distribuída pelos cozinheiros, ganha vida própria e apelido na cozinha, “marcha moqueca!”, e pela primeira vez desbrava o salão.
O cozinheiro espia da boqueta para acompanhar a reação e reza para ser alguém disposto a receber um sonho. O restaurante não é feito de sonhos, muito menos de sonhadores, mas a criação se alimenta desses encontros lúdicos. A conversa se interrompe, o casal observa o prato, levam o garfo à boca, mastigam alguns segundos e se olham sobressaltados. O cozinheiro sorri de dentro da cozinha vitorioso por ver seu momento de intimidade devidamente representado naquele prato. É o único a entender o que significa aquele olhar curioso. Como se um escritor pudesse presenciar o deleite de seu leitor no instante justo, e pagasse o preço de ver seu livro se dissolver em saliva."



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