Encontrei no blog do restaurante brasileiro Maní Manioca um fabuloso texto de Fernanda Valdívia que não pude deixar de partilhar...
"Tem alguma
coisa subjetiva sim, que brota num instante incontrolável, de forma menos
racional ainda, se desenrola por meios instáveis e consegue chegar vitorioso do
outro lado. O momento em que um cozinheiro se depara pela primeira vez com uma
ideia, e dias depois, o momento em que o cliente se depara com essa mesma ideia
em um prato, são cúmplices de sentimento. Estava lá um cozinheiro sentado ao pé
da janela, dia frio, dia de folga, pernas doloridas descansando sob uma xícara
de chá entre as mãos. Cozinhar é encontrar-se com si próprio, em silêncio. “É
preciso estar presente naquilo que faz, sabe? Na cozinha, a presença é a diferença. Se você
está, sai um prato, se não está, sai completamente outra coisa, do mesmo prato”
Helena.
Havia um sabor destacado no serviço da noite anterior,
guardado na memória para ser explorado no dia seguinte, um sabor danado que
coçava a língua logo cedo ao despertar. Havia uma manhã inteira estendendo um
tapete felpudo de reflexão onde se rolar com esse sabor. “Com abóbora? Não sei
se tão doce assim, talvez mandioquinha. Coentro cairia bem. Chega de reduções,
chega de manuseio. Um frescor, um pouco de brasa e limão.” A inquietação, o
vulto do destino na ebulição do pensamento e o prazer do caminho, disfarçado na
angústia de descobri-lo. É um segredo que o cozinheiro leva com ele por dias, e
se diverte tentando reconhece-lo em pedaços da rotina, marcha um prato que leva
tapioca, experimenta uma colherada do que sobrou na panela, associa ao seu
segredo e reformula o caminho. Até que finalmente o bicho vai ganhando forma,
começa a aparecer em testes, vai devolvendo o resultado da explosão entre ideia
e matéria de forma ainda mais inédita. E a execução, levada à exaustão, se
consolida. Entra para o cardápio, é desmembrada e distribuída pelos
cozinheiros, ganha vida própria e apelido na cozinha, “marcha moqueca!”, e pela primeira
vez desbrava o salão.
O cozinheiro espia da boqueta para acompanhar a reação
e reza para ser alguém disposto a receber um sonho. O restaurante não é feito
de sonhos, muito menos de sonhadores, mas a criação se alimenta desses
encontros lúdicos. A conversa se interrompe, o casal observa o prato, levam o
garfo à boca, mastigam alguns segundos e se olham sobressaltados. O cozinheiro
sorri de dentro da cozinha vitorioso por ver seu momento de intimidade
devidamente representado naquele prato. É o único a entender o que significa
aquele olhar curioso. Como se um escritor pudesse presenciar o deleite de seu
leitor no instante justo, e pagasse o preço de ver seu livro se dissolver em
saliva."
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